Ilustração/Esboço Dulce Alves Guarda |
Nos campanários começavam a amontoarem-se pequenos troncos secos e ervas trazidos pelas cegonhas. As raposas caçavam freneticamente as lebres que saltitavam por entre as pedras e a mata rasteira e, os mochos galegos permaneciam de vigia à espera de mirarem uns deliciosos ratos desprevenidos.
O ar de final de tarde estava ameno, sem vento e o alaranjado do céu, antevia uns dias solarengos.
Sentado debaixo do velho sobreiro do Monte Branco, Manel esculpia um pedaço de bucho. Ao longe, no horizonte do montado, pinceladas negras deambulavam como uma geometria de pontos andarilhos. Uma camada de touros encaminhava-se para a Barragem dos Patos Bravos onde saciavam a sede da tarde quente.
Era o momento pelo qual Manel aguardava e que tanto gostava de apreciar.
Manel era um aspirante a biólogo e no seu código genético, herdara a antiguidade e o espírito de moço de forcado; transpirava afición por todas as moléculas.
Depois de uns dias intensos de faculdade, reservava os fins-de-semana para as suas caminhadas pelo montado até à árvore de porte corticeiro e copa majestosos que o tinha embalado em tenra idade no baloiço que o bisavó tinha-lhe construido. Agora, amava abraçar o tronco e sentir a energia daquela árvore que o acompanhava, assim como abraçar toiros bravos. E ali contemplava a liberdade de campo, a bravura e a nobreza do animal que mais venerava.
A sua paixão era pegar toiros; entregar-se serenamente à força de um forte e por vezes agressivo abraço, dado com os braços todos, dado com o corpo, dado com a pele, dado com o coração.
E naquela manada que a passo vinha até ele, podia estar o próximo abraço.
As festas seculares da vila estavam anunciadas em cartazes emoldurados nas paredes caiadas de fresco e na taberna do Ti Faustino, estava exposto o cartel onde o grupo de amigos de Manel, estava anunciado para as pegas da tradicional Corrida de Touros à Portuguesa de Domingo.
E da manada que gostava de ver nas margens da barragem, estavam seleccionados sete exemplares da ganadaria da terra.
A aproximação do dia, tomava-lhe as entranhas; um misto de medo, paixão e entrega de camaradagem. Dialogando com os seus pensamentos e com a navalha a esgravatar o bucho, a uns escassos metros, aproximava-se um toiro negro estrelado, musculado e astifino. Seria aquele imponente animal que o destino destinava-lhe? Manel observou-o. Era um toiro carregado de misticismo. A mancha branca na testa em forma de estrela era o prenúncio de algo. Na margem, estrelado saciou calmamente a sua sede com a água fresca. Ergueu a sua cornamenta, fixou por momentos Manel e em porte altivo, juntou-se novamente à manada.
Os festejos em honra da padroeira da terra, rebentavam com morteiros no céu. A música, a cor, os aromas, já faziam-se sentir e o sangue de foliões, crentes e aficionados fervilhava nas veias bem como a alma na voz...Ooooolé! Na torre da igreja, os badalos nas campânulas dos sinos, marcavam as cinco da tarde... Nessa manhã, do sombrero camel do maioral, tinha sido lançada a sorte:
- E que Deus reparta a sorte!
Soa a Maria da Fonte. Começam as cortesias, e Manel perfilado no seu grupo, de barrete verde com lista encarnada, velhinho e de herança paternal ao ombro, esboça na areia, duas perpendiculares invocando protecção divina. Em praça, anuncia-se o Fadista de 560 Kg; um toiro de quatro anos de reinado e de divisa centenária. Toca o clarim para a esperada pega rija... É a hora do salto à trincheira para a pega de caras, à barbela ou de cernelha. E é Manel o escolhido, que vai à cara. Finalmente o derradeiro e único encontro de corpo humanimal.
De jaqueta de lã escarlate com ramagens, camisa branca, calção de anta, gravata negra e cinta vermelha, meia branca e sapato atanado, caminha para o Fadista... O toiro estrelado da barragem, pelo qual enamorou-se! O prenúncio era agora presente.
De barrete enterrado abaixo das sobrancelhas fartas, olhos negros fixos no negro estrelado, Manel cita-o com voz cantante e segura, conquistando a atenção e o galope cadenciado de Fadista até si.
Numa moldura apinhada e em silêncio, Manel deixa-se levar abraçado no ímpeto de força à cara e que nem lapa no voo de Fadista, que ao sentir o abraço racional, degladeia-se irracionalmente nas alturas do seu destino.
Os olhares racionais e irracionais também cruzam-se, escolhem-se, assim como a atracção do fadado destino, pois ficara registado na história da tauromaquia, como o melhor abraço dessa temporada.
Dulce Guarda
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"A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida." Vinicius de Moraes
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